Brasil: o país da zoeira ainda tem jeito?

Letícia Magalhães
5 min readJun 7, 2017

O povo brasileiro é conhecido por seu bom humor. Isso pode ser uma bênção ou uma maldição. Quase nada afeta o brasileiro tão fortemente que ele não consiga fazer uma piada com a situação e deixar tudo mais leve. Ao mesmo tempo, o brasileiro “perde o amigo, mas não perde a piada”, e na busca por “mitar”, acaba perdendo a seriedade e passa a ver a realidade de um jeito distorcido.

O falso médico

Há poucos dias, se tornou viral a história do falso médico que disse estar apto a clinicar depois de ver 13 temporadas da série Grey’s Anatomy. O material para troça estava ali, fácil. Logo os internautas começaram a dizer quais profissões as séries lhes ensinaram e espalhando o rosto e o nome do jovem da reportagem.

Dias depois, ele estava morto. E descobriu-se que a alegação sobre Grey’s Anatomy era de 2016, ou seja, há muito tempo ele já vinha gritando por ajuda sem ser atendido. Depois de se tornar alvo da zoeira geral da internet, se matou.

Uma pessoa que claramente precisava de ajuda, sendo julgada e zoada pelas mesmas almas caridosas que se emocionaram com 13 Reasons Why — mas não aprenderam que nossas ações refletem na vida de outras pessoas.

O recreio temático

Agora é hora dos cristãos de alma caridosa. Paralelamente à notícia anterior, correu a internet uma compilação de fotos de alunos do terceiro ano do ensino médio de uma escola cristã que fizeram um recreio temático com o trote “e se nada der certo”. Os alunos foram fantasiados como os tipos de profissionais que eles se tornariam se nada desse certo.

Parece que já deu tudo errado…

Havia montes de empregadas domésticas, atendentes do McDonald’s e do Boticário, garis, pedreiros, mecânicos e vendedores em geral. Os alunos, de classe média e alta, ironizavam as profissões “inferiores” com muita zoeira.

A internet não reagiu com brincadeira, mas com indignação. Embora alguns ainda defendam os alunos da instituição, a maioria criticou a ação e lembrou que todo trabalho é digno. Muitos mencionaram algo que eu sei porque vi colegas vivendo isso: que quando “nada dá certo” para os alunos playboys, eles tiram um ou mais anos sabáticos para fazer intercâmbio e depois voltam para trabalhar na empresa do pai — a única que os contrataria, obviamente.

E tudo isso nos faz lembrar alguma situações lá fora. A escola está com a reputação péssima, mas logo o tempo passa e todo mundo esquece — e os alunos continuam matriculados, e ninguém é punido. Entretanto, há poucos dias a universidade de Harvard cancelou a admissão de 10 estudantes que compartilharam num chat no Facebook memes racistas e incentivando abuso sexual.

Além de Harvard, o Brasil podia aprender com Barack Obama: as duas filhas do ex-presidente norte-americano trabalharam como garçonetes em seus primeiros empregos. Não é nada degradante — e elas poderiam, como filhas do presidente, serem colocadas em qualquer posição privilegiada em qualquer empresa do mundo. Graças a uma mentalidade diferenciada e mais consciente, elas não quiseram isso.

A Olimpíada de Matemática

Desde o fim da noite de segunda, cinco de junho, véspera da primeira fase da OBMEP — Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas — o assunto vem sendo comentado, sobretudo, no Twitter. São milhares de alunos se vangloriando de terem chutado tudo na prova e zoando as questões.

Foi uma zoeira muito semelhante à que invade a rede durante o ENEM, e com um dos mesmos problemas principais: divulgação de questões e cartões-resposta em fotos postadas nas redes sociais. Não há repressão na OBMEP semelhante à que ocorre no ENEM. E os alunos não pensam que outros alunos do país inteiro farão a prova ainda, nos turnos da tarde e da noite, e podem ver as questões de antemão na web. Esta página, por exemplo, não se importou em divulgar as questões e fazer piadinhas — e por que se importaria, se ela ganhou mais de 30 mil likes em um dia com essa zoeira?

Na busca de likes, retweets e 15 segundos de fama na internet, os brasileiros aprendem a ultrapassar limites desde cedo — desde a escola, como a OBMEP nos mostra, e o ENEM retifica. Em busca de likes, estudantes estúpidos tiram foto do gabarito do ENEM e colocam na web — para logo depois serem descobertos e terem suas provas anuladas. Em busca de um pouquinho de fama, engraçadões fingem estar atrasados para a prova, e acabam aparecendo em grandes sites porque os jornalistas não checaram devidamente os fatos.

E aí, está valendo mais ser engraçado e popular que fazer a coisa certa?

Que disposição, hein, Brasilzão?

Não é a intenção o que vale

Não era intenção dos internautas zoeiros acabar de vez com a saúde mental do falso médico. Não era intenção da escola chique desmerecer os profissionais. Não era intenção dos alunos prejudicar ninguém na OBMEP. Mas depois que o estrago foi feito, o que vale ainda é a intenção?

Anos atrás, em uma época da qual eu gostaria de me esquecer, um professor falava sobre uma situação de bullying sofrida diretamente por mim, quando um aluno, bem ao estilo dos playboys “se nada der certo”, me acusou de não ter espírito esportivo.

Não é questão de espírito esportivo. Não é nem questão de parar a zoeira quando ela não está divertindo a todos, e sim machucando a alguns. É questão de deixar a zoeira de lado de vez em quando e perceber que só com seriedade você, o piadista, e o Brasil podem progredir.

--

--

Letícia Magalhães
Letícia Magalhães

Written by Letícia Magalhães

Lê. Latina. Aspie. Cinema. Feminism.

No responses yet