Deixem Marilyn em paz: “Blonde” e outros pecados

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
8 min readOct 2, 2022

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Conta-se que Marilyn Monroe estava se preparando para estrelar um filme sobre a vida de Jean Harlow, atriz da década de 1930 que morreu precocemente aos 26 anos, até que leu o roteiro. Imediatamente Marilyn se desligou do projeto, comentando: “Espero que não façam isso comigo quando eu me for”. Três anos depois da morte de Marilyn, duas cinebiografias de Jean Harlow chegaram aos cinemas, ambas bastante criticadas. Seja esta anedota verdadeira ou não, o que podemos afirmar é que não deixam Marilyn descansar em paz como ela queria. Prova disso é que, 60 anos após sua morte, chegaram ao catálogo da gigante do streaming Netflix duas obras sobre Marilyn: o documentário “O Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas” e o filme “Blonde” — isso sem contar o deplorável acontecimento de Kim Kardashian vestindo o mesmo vestido icônico usado por Marilyn e estragando para sempre a peça histórica.

Mas vamos nos ater aos filmes. Um deles é um documentário que chegou e passou sem muito alarde, enquanto “Blonde” vem chamando atenção desde sua gênese: inspirado no livro polêmico de Joyce Carol Oates, fez uma grande aposta ao escalar a cubana Ana de Armas para interpretar este ícone tão fortemente norte-americano. A caracterização perfeita de Ana como Marilyn causou rebuliço nas redes sociais mas a estreia, muitíssimo esperada, acabou decepcionando.

O Mistério de Marilyn Monroe: reabrindo um grande debate

O documentário parte de 650 entrevistas gravadas nos anos 80 pelo jornalista investigativo Anthony Summers. Incapaz de conseguir conversar sobre a morte de Marilyn, ele decide começar do início, e entrevistar quem conhecer a Monroe aspirante a estrela, mais uma entre tantas que sonhavam com o estrelato. Era uma indústria dominada por homens — mais ainda do que hoje — e na qual as garotas tinham, com raras exceções, de se submeter aos caprichos e desejos de diretores, produtores, responsáveis pelo casting e quem mais pudesse se aproveitar de sua posição em Hollywood para transar com as jovens sonhadoras.

Marilyn não era boba, o documentário frisa: queria ser levada a sério como atriz. Ela soube jogar o jogo de Hollywood para conseguir trabalho em frente às câmeras: primeiro em sua aproximação com o produtor Joseph Schenck, depois com o agente Johnny Hyde que, doente terminal, abandonou a esposa para se dedicar a Marilyn.

Quem a conheceu fala muito sobre sua dedicação. Esta é a qualidade frisada por Jane Russell, colega de cena em “Os Homens Preferem as Loiras” (1953), e pelo diretor John Huston, que esteve na direção de um de seus primeiros e seu último filme. Huston comenta como Marilyn não tinha técnica, apenas acessava suas experiências pessoais como mulher para compor as personagens.

São mencionados e explorados, obviamente, os dois casamentos de Marilyn, com Joe DiMaggio e Arthur Miller, e sua aproximação com os Kennedy, John e Robert, ainda em meados dos anos 50. Explicitam como ela foi observada pelo FBI, por causa de acusações comunistas contra Miller, e pelo detetive particular Fred Otash, que colocou grampos na casa da atriz para ouvi-la com os Kennedy.

A parte mais interessante do documentário começa com o fim de Marilyn, quando os depoimentos colhidos em fita não batem com a história oficial de que a atriz fora encontrada morta às três da manhã pela governanta e por seu psiquiatra. O FBI esteve no local, e horas antes de sua morte Marilyn entrou em contato com os Kennedy. Essas descobertas trouxeram mais perguntas que repostas, e a conclusão do caso permaneceu inalterada.

O grande defeito do documentário é não mostrar Marilyn como uma pessoa, com sentimentos e pensamentos. Sim, falam que ela era inteligente e talentosa, inteligência e talento que não foram usados em todo seu potencial, mas aqui jaz o problema: “fala-se”, não “mostra-se”. O uso de algo mais que clipes velozes de seus filmes — em especial de suas duas melhores performances, “Almas Desesperadas” (1952) e “Os Desajustados” (1961) — seriam mais que bem-vindos.

Blondexploitation: nada é verdade e Hollywood é uma selva

Pense no filme mais triste que você já viu. Pode ser “A Vida é Bela” (1997) ou “Túmulo dos Vagalumes” (1988). Holocausto e guerra são coisas extremamente tristes, mas sabe o que também é bem triste? Pegar uma pessoa que realmente existiu e despi-la de toda a humanidade, sobrando um poço de trauma e sofrimento. É isso que acontece no filme “Blonde”, que sequer tenta ser uma cinebiografia de Marilyn Monroe, a loira mais famosa da sétima arte: é, e sabe que é, uma narrativa fictícia em torno de uma pessoa real. Deste modo, não é produtivo apontar as incoerências do roteiro em relação à vida de Marilyn. É melhor analisar “Blonde” pelo que é: uma sessão de tortura que procura deleitar o espectador.

Há uma dicotomia verdadeira: Norma Jeane era a pessoa, Marilyn a estrela, ou como é dito no filme: Norma Jeane tinha uma vida e Marilyn, uma carreira. Ambas para sempre atormentadas pelo fato de não conhecer o pai — Norma Jeane mais atormentada que Marilyn, apesar de, coincidência das coincidências, uma música que diz “Every baby needs a da-da-da-daddy” ter sido cantada por Marilyn na primeira vez em que interpretou uma protagonista. O Complexo de Édipo continua gritante em sua vida, tanto é que só chama seus maridos de “papai”.

A inteligência de Marilyn só é mencionada em dois momentos. Primeiro quando, no teste para “Almas Desesperadas”, ela diz ter lido Dostoiévski, o que gera risinhos nos homens que conduziam o teste. Eles estão mais interessados em sua bunda e um deles comenta que vê-la no teste não é ver uma atriz atuando, mas uma doente mental vivendo uma de suas crises. A segunda menção ocorre no primeiro encontro entre ela e Arthur Miller (interpretado por Adrien Brody), quando ela discute a obra do dramaturgo com propriedade e o deixa emocionado.

Mas o que mais me deu asco foi usar Marilyn para divulgar o discurso “pró-vida”. Já é de extremo mau-caratismo humanizar um feto chamando-o de nascituro, assim como mostrar um embrião como um ser humano em miniatura — pecado que o filme comete, e nem é o pior dos pecados de “Blonde”. O que primeiro acontece na narrativa é que Marilyn engravida enquanto vive um triângulo amoroso com os filhos de Charles Chaplin e Edward G. Robinson — que estranhamente se parecem, apesar de seus pais serem o mais distintos fisicamente possível. O filme ainda reafirma o discurso antifeminista ao mostrar que levar uma gravidez adiante é a coisa certa a fazer, apesar de todos os pesares. E isso tudo ainda serve para fortalecer a ideia de que Hollywood sempre esteve cheia de gente promíscua que “mata bebês” e é contra a família.

A partir da sequência do aborto, o filme — e, podem pensar alguns, a vida de Marilyn — vai só ladeira abaixo. Casada com Joe DiMaggio (interpretado por Bobby Cannavale), mostra-se uma dona de casa inábil e vítima do ciúme do marido. A sequência que recria a gravação da cena mais icônica de sua carreira, no filme “O Pecado Mora ao Lado”, poderia ter sido uma declaração feminista ao usar o male gaze para momentaneamente transformar “Blonde” em um filme de terror — poderia, se a câmera não compartilhasse deste male gaze. Nesse momento, até o pai ausente ressurge através de cartas para desaprovar o que ela faz no filme de 1955 e também lamentar o divórcio de DiMaggio.

Novamente grávida, desta vez de Miller, volta o macroembrião e a própria Marilyn diz que “agora o bebê expressa seus desejos. Norma é só o receptáculo” 🤮 Surge então a cena mais absurda do filme todo: o macroembrião com traços de feto totalmente formado CONVERSA com Norma Jeane e pede que não o mate. Sem dúvida essa cena do feto fake, fora do contexto do filme — se bem que nem dentro do contexto ela faz sentido — será usada por inúmeras organizações “pró-vida” em eventos contra o aborto.

A questão é: poderia ser feito um dramalhão sobre uma estrela de cinema atormentada? Poderia, mas não seria vendável se não fosse Marilyn. Poderia ser feito algo reescrevendo a história, como Tarantino fez em “Era uma Vez… em Hollywood” (2019) ou Ryan Murphy fez na minissérie para a Netflix “Hollywood” (2020): duas obras que têm seus senões, mas ainda são mais respeitosas do que “Blonde” com seus personagens.

E daí surge um dos maiores crimes da exploração da vida de Marilyn: fala-se sobre ela, especula-se sobre sua morte e seus sofrimentos, mas nada é feito para que se assista aos filmes de Marilyn — aliás, nenhum filme de sua filmografia chega perto das quase três horas de duração de “Blonde”. Assim todos conhecem Norma Jeane e seus tormentos, mas desconhecem Marilyn Monroe, a atriz — e, apesar de muitas vezes subaproveitada ou escalada para papéis estereotipados, era uma atriz de talento.*

Poderia ser levantada a hipótese de que “Blonde” fracassou por ter sido feito por um diretor, não uma diretora — ou pelo menos alguém menos viciado em atacar o direito ao aborto. Isso, no entanto, não se justifica: no próprio livro-base de Joyce Carol Oates há ataques a Marilyn, como este trecho que diz que ela foi conivente com sua transformação pela mídia em “loira burra”:

No documentário, um enfermeiro cita o diretor George Cukor, que disse que Marilyn seria a atriz mais famosa de sua geração, quiçá do século XX. Não necessariamente a mais famosa, com certeza ela é a mais icônica e aquela cuja vida é mais lembrada justamente por todos os seus percalços. Mas a mídia, a própria Hollywood que a criou e a destruiu, não precisa continuar alimentando a lenda Marilyn. Já passou da hora de deixarem-na descansar em paz e principalmente deixar que seus filmes falem tudo o que têm para falar sobre seu real talento.

*Para uma análise de toda a filmografia de Marilyn Monroe, recomendamos este artigo, um ótimo ponto de partida para conhecer a loira da maneira que ela merece: https://criticaretro.blogspot.com/2015/01/precisamos-falar-sobre-marilyn.html

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